O que falar para
alguém que está prestes à morrer?" - Nota de Falecimento de R.
“Olá
Fred,
Já que a Dona M. tomou coragem e confessou que nunca amou o marido de 30 anos
eu tomei a liberdade de mandar esse e-mail.
Enviei logo cedo após receber meus remédios para que você pudesse ler logo que
acordasse. Espero que não se importe.
Estou há uma semana internado num bom hospital e entre um mal-estar e outro
tenho lido seu blog. Logo que me internei um amigo me disse: acho que agora é
hora de pensar sobre a vida. Sou viciado em tecnologia, peguei meu iPad (foi a
única coisa que pedi que os médicos não me tirassem) e digitei no Google “sobre
a vida”. Surgiu seu blog e confesso que pensei “mais um blog de merda falando blábláblá”.
Não dei confiança, mas depois de não achar nada muito interessante voltei ali.
Tenho 28 anos, minha barba cultivada com gosto para que eu aparente mais idade
está caindo, isso me aborrece.
A questão que me intriga é que vou morrer e não sei o que fazer diante da
morte. Vou morrer em breve, talvez eu não receba sua resposta. Claro que não
estou pendente disso para morrer (isso está infelizmente fora de minhas mãos),
mas filhadaputamente o padre que veio me visitar e não gostei do que ouvi. Sei que
ele trouxe palavras bondosas, mas tão vazias de real sentido para mim que
aproveitei que eu estava vomitando que nem um desgraçado para enxotar aquele
velho de batina. Minha doença me consome rapidamente e não acredito em nada
para além desta vida, nem preciso acreditar. Sou ateu (o máximo de fé que tenho
é fazer figuinhas, pois mamãe me ensinou e lembro dela quando faço) e sinceramente
não me culpo por isso.
Tive uma vida cheia de acontecimentos, aproveitei tudo mesmo, sem exageros ou
excentricidades. Minha doença é um tipo de problema genético, raro e fatal. Os
médicos não afirmam nada (eles sempre estão um pouco emburrados), mas já
pesquisei na internet e realmente acho que vou bater as botas mais rápido do
que eu queria.
Fiquei pensando o que você, como psicólogo, teria a dizer para alguém que tem
algumas horas ou dias de vida ainda pela frente? Se eu não conseguir ler a
resposta espero que ajude alguém nas mesmas condições ou que ajude qualquer um.
Abraço,
R.”
Caro R.
Acho que não estou em posição de
aconselhar alguém que está em uma condição única e porque não dizer
privilegiada como a sua. Sim, privilegiada. Estar diante do próprio fim e fazer
a pergunta certa não é tão simples.
Já que você digitou no Google SOBRE A
VIDA, vou falar algumas coisas que penso sobre a vida. Espero que sirvam.
Na vida eu finjo que não tenho medo da
morte faz muito tempo. Eu tenho construído um castelo de certezas, de virtudes
e de sentido para simplesmente negar o fato de que vou morrer, assim como você.
Na vida vi que todas as amizades que
tenho são para me deixar menos sozinho comigo mesmo. Além disso evitar saber
que tudo irá acabar de um momento para o outro. Mas elas dão um colorido
diferente para o passar dos anos. Algumas valem a pena cultivar, outras são
passageiras e deixam uma marca, algumas temos o dever moral de levar para a
vida inteira.
Na vida não tenho certeza de nada e noto
que a maior parte das pessoas não tem. Mas não perdemos a irresistível atração
em fingir que sabemos de tudo. Antes eu ouvia os bons conselhos, agora duvido
deles. Sempre me parecem demasiado polidos ou conservadores. Como aquelas tias
velhas que tem medo de atravessar a rua e recomendam que você não faça o mesmo.
Com as críticas ainda tenho
dificuldades, confesso que quando me dizem que sou metido a sabichão ainda fico
meio doído. Acho que é pelo fato de que a pessoa ainda não me conheceu de
verdade e me julga pelas minhas defesas. A prepotência que me resta é só um
jeito falsamente forte que encontrei para que eu não seja inundado pelo mar de
amor que sinto, mas me fragiliza.
Pelo visto você é uma pessoa que foi
agraciada pelo bem estar financeiro. Isso é excelente, com o tempo aprendi que
o dinheiro pode ser um grande amigo de boas realizações. Que ele é a chave
mestra que reflete o fruto do meu trabalho e que me abre portas para conhecer
coisas que eu nunca poderia sem ele. O dinheiro não é meu inimigo e nem meu
amigo, apenas um cúmplice daquilo que quero ser. O meu dinheiro sou eu em forma
de notas. O dinheiro de cada um reflete o que a pessoa é.
Também me parece que você é muito amado
pelas pessoas. Essencialmente cercado de pessoas boas que te recomendam no
momento mais difícil que pense sobre a vida. Isso parece que é a grande fórmula
para viver e morrer feliz. Nos cercamos de muitas pessoas que nos fazem mal,
nos colocam para baixo e subestimam nossa capacidade. Elas querem nos ajudar de
um jeito que reforça nossa infantilidade e passividade na vida. Com o tempo
procurei selecionar as pessoas do meu convívio. Conheci amigos maravilhosos,
terminei relacionamentos que me faziam mal e cultivei bons hábitos como me
encontrar sempre que possível com as pessoas que eu amo. Meus livros que eu
tanto adorava ler com exclusividade absoluta agora estão um pouco de lado. Ainda
os amo, mas livros sem pessoas são apenas folhas sem sentido. O verdadeiro
livro que sempre quis escrever já está sendo escrito no longo dos meus dias.
Acho que o seu livro não-publicado deve ter excelentes páginas e narrativas
memoráveis. Deixe que isso te alegre, inclusive agora.
Com o tempo eu percebi que a cereja do
bolo da minha vida não foi composta de grandes eventos ou celebrações. Mas foi
no tecido invisível dos minutos discretos que ninguém reparava. Eu sempre soube
que aqueles pequenos gestos de gentileza é que realmente fazem a diferença.
Acordar um pouco mais cedo para dar a mão para uma pessoa. Levantar da cama
antes e pegar o copo d’água. Consolar uma lágrima que não foi anunciada.
Pequenas coisas pelas quais você não vai ganhar nenhum prêmio ou recompensa e
ainda assim devem ser feitas.
Meu caro R. tenho medo, muito medo de
tudo. Medo de falhar, fracassar, decepcionar, fraquejar, deprimir até parar com
tudo e ficar maluco, as vezes enfrento dias difíceis (na minha cabeça) que
penso que não vou aguentar. Mas administro esse medo da seguinte maneira, sei
que são apenas medos, nada além disso. Um jeito meio menino de fantasiar as
coisas maiores do que realmente são só para que depois eu brinque de
super-homem. Afinal quanto maior meu obstáculo, mais eu acho que fui invencível
na superação.
Hoje tenho rido muito mais de mim, sou
um desastrado. Não sei cortar uma melancia sem sujar toda a pia e ela ficar
parecida com um leque torto e feio. Me perco no transito, mesmo com GPS. Falo
coisas fora de hora. Confesso meu amor antes do tempo. Tolero coisas
intoleráveis por mais tempo que devia. Sou um bobo incorrigível. Mas, afinal,
essa é a versão improvisada de mim mesmo, sei que com o tempo esse eu de hoje
será uma lembrança pálida no eu de amanhã. Então rir de mim me ajudou a não me
magoar tanto ou me levar tão à sério), afinal todos somos rascunhos da vida.
Perdidos como ratos pelados.
Lidar com pessoas sempre foi um desafio
para mim. Sou sensível ao extremo, um sorriso me levanta e um olhar de
desaprovação me derruba. Comecei a entender, a duras penas que não posso ter
controle do que os outros sentem por mim. Se você me odeia problema seu, se me
ama também. Pode parecer uma visão radical ou uma fala grosseira. Mas se
pudesse me ouvir agora dizendo isso seria com uma voz doce e com sorriso nos
olhos. O ódio que sente por mim é responsabilidade sua, o amor que sente
também. O máximo que posso fazer é dançar em volta do seu coração até que seu
ódio se acalme e me veja humano (com o que tenho de bom incluído) e seu amor se
consolide e me veja humano (com o que tenho de pior incluído).
Acho que o mais difícil de morrer deve
ser imaginar que não veremos mais aqueles que amamos. Quando trabalhei com
pessoas com câncer (doença nem sempre rápida e fatal) aprendi que a melhor
despedida acontece com as relações que foram mais completas e sem falsidades.
Se tivemos uma relação truncada, conflituosa e cheia de pendências o luto é
mais difícil. Nesse momento tente diminuir as suas pendências e diga o que vem
no fundo do seu coração para os outros. Não hesite, você não tem mais nada a
perder. Literalmente.
Posso dizer que o amor e o trabalho
sempre me guiaram. Mas sei que o amor é um enigma. Hoje me parece muito mais um
grande campo em que muitos eventos acontecem por ali. Toda a vez que tentei
cercar demais a pessoa amada ela se foi, deixar ela pra lá em demasia também
não funcionou. A melhor garantia que posso oferecer hoje é que onde eu estiver
estarei ali.
Já fique muito preso ao passado e tudo o
que não funcionou ali. Também já fiquei afoito para que o futuro chegasse logo
e ele nunca chegou quando eu queria. Então decidi colocar o rabo no meio das
pernas e viver aquilo que eu consigo hoje. As vezes minha cabeça me engana e
tenta me sequestrar para frente ou para trás. Então eu digo para minha mente
“ei, dá uma olhadinha nesse momento entediante, podemos fazer algo com isso,
que tal?” e numa fração de segundos a minha mente faceira corre para brincar
comigo no presente de novo.
Sou tão jovem quanto você, então não
encare como presunção tudo o que eu disse. Posso garantir que existem vidas
muito mais interessantes que a minha para você tomar por exemplo. Minhas
grandes vivências aconteceram mais no fundo do meu coração do que na vida
concreta. No entanto, foi a vida que me coube viver e que me satisfez até
agora. A sua vida é a melhor que você pode viver, olhe com compaixão por ela,
nada acrescente nela e muito menos mutile. Tudo ali é do tamanho que devia ter.
Até sua barba que se despediu de você.
Quando olhamos uma vela temos a ilusão
de que ela irá apagar quando a cera chegar ao fim. As vezes acaba antes, outras
a luz continua depois. No seu caso, sua vela está te surpreendendo, em alguns
minutos. A minha pode me surpreender, assim com todas as pessoas que amamos.
Estamos no mesmo barco.
Minha curiosidade (mal que não quero
tirar de mim) vai me dizer para que dê um retorno caso tenha conseguido ler.
Sei que os leitores do blog vão pedir o mesmo. Então se puder, mande um sinal
de fumaça. Sei que esse texto vai ajudar mais quem ficará vivo (ou finge que
está vivo como eu) por um pouco mais de tempo que você. Mas se te ajudar em
algo, já fico mais que satisfeito.
Ah, se eu pudesse falar uma última coisa
seria morra o mais vivo que puder…
Um abraço meu caro, longa vida enquanto
ela existir!
_______
Hoje recebo esse recado:
Meu irmão pediu que eu enviasse esse
e-mail para você assim que falecesse. Ele me mostrou o texto do seu blog
emocionado e falou coisas muito bonitas sobre o amor que sentia por todos nós e
se desculpava se nem sempre estava tão presente quanto gostaria. Acrescento que
ele partiu essa madrugada de sexta-feira tranquilamente e sem dor, abraçado com
papai e seu iPad (inseparável, aposto que vai procurar o Steve Jobs).
Sentiremos muito a falta daquele menino que sempre tinha uma palavra carinhosa
e um sorriso pronto nos lábios.
"Querido Fred
Fiquei comovido com a honestidade em
revelar aspectos da sua vida de um jeito tão afetuoso, gentil e claro. Eu
também não sei cortar melancia direito. Achei de extremo carinho você não
tentar me convencer de nada como fez o padre.
Nas suas palavras vi que a maior
expressão do espiritual é a própria vida e as pessoas à nossa volta: o amor que
me une à minha família e os meus amigos. Pensando assim, o meu quarto estava
absurdamente lotado de coisas espirituais agora à pouco e pedi que todos me
deixassem à sós por minutos para poder escrever essa mensagem. Prefiro que ela
seja entregue à você quando eu morrer. Agora posso falar sem peso sobre a
morte, pois sei que deixarei meu legado com todos: minha memória.
Meus amigos trouxeram um violão e me
cantaram músicas que eu gosto (uma delashttp://www.youtube.com/watch?v=L3eiOMQVUqs).
Meu pai fez bolo de laranja com suco de cajú de dar lombriga. Minha irmã
recitou um poema de Vinícius de Moraes que me emociona. Minha namorada só chora
e me beija (energia feminina pura) - bem que eu podia durar mais uns dias ;).
Meu primo trouxe um pendrive com imagens do meu cachorro latindo para a camera.
Mamãe já falecida, me veio fortemente na memória. Não tenho a pretensão de
reencontrá-la, pois no meu coração ela nunca partiu. Estou meio sensível
hoje! heheheh
Obrigado pela rapidez e prontidão em me
responder, nem esperava um post para mim (mentira) e senti o carinho dos seus
leitores. Se puder crie uma nota de falecimento no Facebook e peça a eles que
compartilhem seu texto com todo mundo (quero ser um morto virtual famoso
rsrsr). As pessoas à sua volta tem sorte em tê-lo em suas vidas, pena não
ter sido seu paciente ou amigo. Fucei na internet (sou stalker) e vi que fará
31 anos em breve, parabéns psicólogo!
Após cremado, quando as cinzas forem
atiradas ao mar digam: aqui nada um homem feliz! :)
Seguirei seu conselho: quero
estar bem vivo quando eu morrer!
Um abraço e longa vida a você também...
Do amigo que parte, R."
Hoje
meu amor fica sem palavras e como foi pedido por R. se quiser compartilhe essa
nota de falecimento. http://www.sobreavida.com.br - Blog do
Frederico Mattos
Espero que tenham gostado!!! Eu juro que gostaria de ser o Fred pra ter tamanha conciência da vida!!!!! Eu queria ter escrito isto!!! Ainda vou!!!! Me aguardem!!!!!
Bjs, Fran.